EM BREVES TRAÇOS
por Anderson Braga Horta
Leopoldina tem sido, pelo menos
desde os inícios do século XX, uma referência cultural no Estado de Minas. Não
apenas pelo fato de ter na cidade vivido os seus momentos finais o grande poeta
Augusto dos Anjos, ou de ter ilustrado os bancos do seu Ginásio o notável poeta
e prosador português Adolfo Correia da Rocha, imortalizado sob o nome literário
de Miguel Torga. Ao tempo em que o jovem poeta Anderson de Araújo Horta iniciava
os estudos secundários no então Ginásio Municipal Leopoldinense, havia já doze
anos que em suas classes brilhava, por exemplo, o grande Professor Joaquim
Guedes Machado. Vindo de Portugal com o curso de engenharia, e depois de se
formar em direito em Niterói, atuar como engenheiro numa usina de Tombos (terra
de meu Pai), tornar-se proprietário e diretor do Ginásio Carangolense e fundar
a Escola Normal, na cidade em que nasci, Machado era já famoso pelo
temperamento e pela inteligência, postos a serviço da Matemática, disciplina
que sempre lecionou e que o tornaria um mestre legendário, na expressão do
escritor José do Carmo. Em 1950, quando me matriculei no Colégio Leopoldinense,
para cursar o Clássico, tive ainda a fortuna de conhecê-lo e de ser seu aluno.
Ao lado de Machado outros educadores
ilustres circulavam, como o francês Rodolphe Gibrat, seu amigo, Oiliam José,
secretário perpétuo da Academia Mineira de Letras, Hamil Adum, de saudosa
memória, e ainda outros que relembro em “Poeta e Mestre de Poesia”, prefácio
aos poemas de Para Elza, de meu inesquecível
professor de Português, Química e História Natural, Geraldo de Vasconcellos
Barcellos, excelente guia nos caminhos iniciais de minha poesia. (Não posso
deixar de assinalar que a edição desse livro nasceu de uma conspiração de que
foram protagonistas, entre outros, nosso sempre recordado Deodato Rivera e seu
irmão, José Jeronymo Rivera, este amigo fraterno que ora generosamente me
recebe.)
Entre esses educadores, o
Professor Lydio Machado Bandeira de Mello.
Lydio era uma figura singular. De
modesta estatura, meio atarracado, causava a impressão de homem solitário,
pouco sociável, inteiramente dedicado a seus altos estudos. Viamo-lo
dirigindo-se ao Colégio ou dele saindo, adernado ao peso de volumosa pasta,
caminhando ao som de uma banda presente ou imaginária, em marcha comandada pelo
ritmo imperativo de um dobrado às vezes inaudível para nós outros. Em sala,
dava com gravidade a sua aula, que acompanhávamos com atenção. Sabíamos que era
autor de muitos livros. A mim, particularmente, fascinava o título de um deles,
Prova Matemática da Existência de Deus.
Falando, encantava-nos com coisas misteriosas, como as raias de hidrogênio que reteriam, gravada in æternum, toda a história do Cosmo. Até hoje não
sei em que regiões da Física, da Química e da Cosmologia ficam essas raias...
Mas encontro-lhes correspondência nos registros
acásicos – palavra não dicionarizada, encontrável em textos esotéricos,
dizendo-se akásico, ou akáshico, na definição mais lata, o
registro de tudo o que acontece.
Lembro-me bem de evaporar-se a
aparência de pouca sociabilidade, certo dia, quando um sorridente Lydio reuniu,
fora de classe, pequeno grupo de rapazes e moças interessados em poesia para a
leitura de poemas próprios. Fomos ao encontro compenetrados, levando nossos
melhores poemas para a crítica do mestre. Ele ouviu, complacente, e ao final
nos passou um “pito”: esperava que nós, poetas adolescentes, lhe levássemos
poemas de amor, e nós nos esmerávamos na apresentação de poemas sérios,
pretensamente profundos... A partir daí a tertúlia se desenrolou mais
descontraída.
Também me lembra ouvi-lo dizer um
de seus poemas, em alexandrinos, mas não lhe gravei nem um verso. Mais tarde,
já poeta publicado, retomei contacto com ele, mandei-lhe livros. Recebi alguns
dos dele, em retribuição. Impressos em letra de fôrma ou caprichosamente
manuscritos e multicopiados. Desse reencontro epistolar guardo carinhosamente a
documentação. Nenhum livro de poesia, entre os ofertados; mas numa de suas
cartas encontro alguns versos. Dr. Lydio manifesta preocupação com a descrença
que julga perpassar os meus Exercícios de
Homem; e alegra-se com este verso: “para nós O Absoluto é a nossa ânsia
dele”, do poema “Que não Somos Deuses”. Diz, a propósito: “A esta ânsia, eu
chamo TEOTROPISMO. Explico-a como sendo a marca, o MADE BY GOD que DEUS
consubstancia em suas criaturas.” E oferece-me à meditação dez versos exemplares
de um de seus sonetos:
DEUS
é a Realidade preexistente
QUE
condiciona a Possibilidade.
Não
ser visto por nós ELE consente
para
nos não tolher a liberdade.
Dá-nos
um símile o estendal sidéreo:
para
que o céu floresça em luz de estrelas,
deve
ocultar-se o sol no outro hemisfério.
Irmão,
convém refletirmos com calma:
É
por amor de ti que DEUS SE vela:
para
que sejas dono da tu’alma!
Nascido na cidade mineira de
Abaeté, em 19 de julho de 1901, viveu 83 anos devotados ao magistério, ao
direito e à glória de Deus. Dos 70 livros que escreveu, 44 estão “publicados e
espalhados por 800 universidades do mundo”. Versam sobre direito penal,
filosofia, filosofia do direito, teologia, etc. A matemática e a metafísica
tonificam toda a sua obra. Em seu blog, José do Carmo Rodrigues fornece dados
importantes acerca de sua vida e seus trabalhos. Tendo uma feita inquirido o
magistrado Augusto Vieira acerca de seu extraordinário vulto, obteve o seguinte
depoimento:
"O mestre Lydio foi um gênio. Bondoso, extremamente estudioso, suas obras de direito penal deveriam estar permanentemente na cabeceira de qualquer operador do direito. .... Suas aulas eram magistrais. Gostava de música e recebia-nos em sua casa com o maior carinho, nas nossas serenatas. Sob aquele manto de homem durão, vivia uma alma cândida, doce e amante da vida. Há muita polêmica em torno dele, mas isso acontece em relação a qualquer figura genial."
Lydio Machado Bandeira de Mello
foi um dos seis ou sete mestres mais altamente dignos dessa denominação que
encontrei em meu curso de humanidades. Desses que deixam marcas luminosas em
nosso caráter. É uma honra vincular-me à Academia Leopoldinense de Letras e
Artes, como sócio correspondente, sob o signo de seu nome.
Alocução de posse na ALLA,
em 31 de maio de 2013.
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